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Um reflexão breve sobre a moral.
#1
Uma coisa é acreditar que os fundamentos éticos sejam ainda não encontrados ou até agora não construídos; outra é não acreditar em fundamentos éticos. O brusco “se Deus não existe, tudo é permitido” de Dostoiévski bradou os mais íntimos medos dos construtores modernos de uma ordem sem divindade (ou talvez “pós-divina”). “Não há um Deus” significa: não há força maior que a vontade humana nem mais poderosa que a resistência humana capaz de coagir os selves humanos a serem morais. Nenhuma autoridade é mais nobre e digna de confiança que os próprios desejos e premonições dos homens para lhes assegurar que as ações que eles consideram dignas, justas e adequadas – morais – sejam de fato corretas; bem como para afastá-los do erro no caso de essas ações falharem.
Se não houver essa força e essa autoridade, os seres humanos estarão abandonados ao seu próprio juízo e à sua própria vontade. E estes, como os filósofos argumentam e os pregadores tentam fazer com que as pessoas entendam, podem dar à luz apenas o pecado e o mal; como os teólogos nos explicaram de forma tão convincente, não se pode confiar neles para produzir um comportamento correto ou fazer passar um julgamento correto. Não pode haver algo como uma “moral eticamente infundada”; e uma moralidade “autofundada” é, gritante e deploravelmente,algo infundado do ponto de vista ético.
De uma coisa podemos ter certeza: não importa quanta moralidade haja ou possa haver numa sociedade que tenha reconhecido estar sem chão, sem propósito e diante de um abismo atravessado apenas por uma frágil prancha feita de convenções, ela pode ser apenas uma moral eticamente infundada. Como tal, é e continuará a ser incontrolável e imprevisível. Ela se constrói; da mesma maneira, pode se desmontar e se reconstruir de outra forma no curso da sociabilidade: à medida que as pessoas se reúnem e se afastam, unem forças e as veem se desintegrar, chegam a um acordo e o desfazem, elas tecem e desmantelam os laços, lealdades e solidariedades que as unem. É tudo o que sabemos. O resto, no entanto – as consequências de tudo isso –, está longe de ser esclarecido.
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#2
Nenhum fundamento foi encontrado ou é suscetível de ser encontrado para o ser, e nenhum esforço para estabelecer essas fundações teve êxito ou poderá lográ-lo. Não há causa nem razão para a moralidade. A necessidade de ser moral, e o significado de ser moral, não pode ser demonstrado nem. logicamente deduzido. Assim, a moral é tão contingente quanto o resto do ser: ela não tem fundamentos éticos.
Não podemos mais oferecer orientações éticas para os selves morais; não podemos mais “legislar” sobre a moralidade nem esperar adquirir essa habilidade nos dedicando à tarefa com mais zelo ou de forma mais sistemática. Convencemos a nós e a todos dispostos a ouvir que o caso da moralidade só é seguro se construído em terra firme, por forças mais fortes qu as dos seres morais em si mesmos – e tais forças precedem e sobrevivem ao curto/estreito espaço/tempo dos selves morais. Por isso achamos difícil, ou melhor, impossível, compreender por que o self deve ser moral e reconhecê-lo como moral quando ou se for esse o caso.
Para a sociedade autônoma, as significações (e também o significado de “ser moral”) não soam infundadas, embora sejam desprovidas de “fundamentos”, no sentido inferido pelos filósofos morais. Elas são bem-“fundadas”, mas suas fundações são feitas do mesmo material que as significações que assumem. São também os sedimentos do processo em curso de autocriação. Ética e moralidade (se ainda se insistir em separá-las) crescem no mesmo solo: os selves morais não “descobrem” seus fundamentos éticos, e sim (de maneira muito semelhante à da obra de arte contemporânea, que deve fornecer seu próprio quadro de interpretação e as normas segundo as quais se dispõe a ser julgada) os edificam enquanto s constroem a si mesmos.
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#3
A modernidade definiu-se como civilização – como uma tentativa de domesticar os elementos e criar um mundo que não seria como é se não fosse o trabalho de criação: um mundo artificial, um mundo obra de arte, um mundo que, como qualquer trabalho artístico, deve buscar, construir, defender e proteger seus próprios fundamentos. Ao contrário de outrascivilizações, a modernidade legislou a si mesma no legislar – a legislação como vocação e dever, além de uma questão de sobrevivência.
A lei posicionou-se entre a ordem e o caos, a existência humana e o vale-tudo animal, O mundo habitável e o inabitável, o sentido e a falta de sentido. A lei era para todos e para tudo: e também para tudo que qualquer pessoa pode fazer a qualquer outra. A busca incessante dos princípios éticos era uma parte (uma parte esperável, inexorável) do frenesi legislativo. As pessoas tinham de ser informadas de seu dever de fazer o bem, e que cumprir o seu dever é  bondade. E as pessoas precisavam ser persuadidas a seguir aquela linha do dever, o que dificilmente fariam sem ser ensinadas, instigadas ou coagidas.  
A modernidade foi e teve de ser a Era de Ética – não seria a modernidade se fosse de outra forma. Assim como a lei precedia toda a ordem, a ética deve preceder toda a moralidade. A moralidade é um produto da ética; princípios éticos eram os meios de produção; a filosofia moral foi a tecnologia, e a pregação ética foi a pragmática da indústria moral. O bem era seu rendimento planejado; o mal, seu resíduo ou um produto fora do padrão. 
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#4
Para todos que costumavam considerar a moralidade o produto final da indústria da ética (isto é, para todos nós, habituados a pensar a moralidade dessa forma), o fim da Era da Ética (ou seja, a era de legislar pela moralidade) anuncia o fim da moralidade. Com as linhas de produção pouco a pouco desativadas, o fornecimento de mercadorias sem dúvida secará.
É sempre o nosso tipo de vida, civilizada, ou a barbárie. Um substituto para essa ordem é a total aleatoriedade, não outra ordem. Lá fora é uma selva, e a selva é assustadora e inabitável porque nela tudo é permitido. Mas mesmo esse indescritível pavor do vale-tudo foi representado pela propaganda promotora de medo da ordem civilizada como “a lei da selva”. Na era da ordem construída e da construção da ordem, a entidade mais difícil, mais que isso, impossível, de contemplar era um mundo no qual não houvesse nenhuma “ordem” – por mais espúria, deformada ou perversa.
Hoje, no entanto, estamos enfrentando o inimaginável: não é o questionamento de um conjunto de princípios legislados em nome de outro conjunto, mas o questionamento do próprio legislar de princípios. É uma selva privada mesmo da lei da selva… Uma moralidade sem uma ética… Não se trata apenas da perspectiva de substituir uma moral por outra; nem da promoção de um tipo errado de moralidade, baseado em princípios falsos ou em princípios não universalizáveis, rudes ou impopulares. A nossa é a impensável perspectiva de uma sociedade sem moralidade.
Os legisladores não podem imaginar um mundo ordenado sem legislação. O legislador ético ou o pregador não podem imaginar um mundo moral sem uma ética imposta pela lei. Em seus termos, eles estão certos. Não admira que seja necessário um enorme esforço para imaginar o vocabulário com o qual conceber, articular e debater as questões morais da condição humana pós-ética e pós-legislativa. É menos ainda de se admirar que esse esforço receba veemente resistência intelectual.
E ainda assim é apenas graças à promoção do princípio moderno de “nenhuma moralidade sem lei ética” que o mundo sem ética parece ser necessário e um mundo sem moralidade. Mas tente jogar fora os sedimentos mentais dessa promoção, apagar a marca de identidade forçada entre moralidade e moralidade eticamente legislada – e pode muito bem ocorrer-lhe que, com o falecimento da legislação ética efetiva, a moralidade não desapareça, mas, pelo contrário, se aproxime de sua própria moralidade. É bem possível que a lei ética administrada pelo poder, longe de ser a estrutura sólida que impede a carne trêmula dos padrões morais de desmoronar, fosse uma rígida gaiola que impediu aqueles padrões de se esticarem até suas dimensões verdadeiras e passassem pelo teste supremo tanto da ética quanto da moralidade – o de orientar e sustentar a integração humana.
Pode bem ser verdade que, uma vez que o quadro desmorone, os conteúdos que ele era destinado a abraçar e conter não se dissipem, mas, pelo contrário, ganhem em solidez, não tendo agora nada com que contar senão sua própria força interior. É bem possível que, com a atenção e a autoridade não mais desviadas para as preocupações com a legislação ética, homens e mulheres estejam livres para – e obrigados a – enfrentar diretamente a realidade de sua própria autonomia moral, o que significa também a realidade de sua própria responsabilidade moral inalienável e não desincumbível. Poderia acontecer (apenas poderia) que, assim como a forma como a modernidade entrou para a história como a era da ética, a era pós-moderna vindoura seja registrada como a era da moralidade…
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